A praia
I.
As ondas distorcem
o areal. Criam fronteiras entre areia seca e molhada. Criam linhas
divisórias entre si, desenham no chão o vaivém natural das marés,
grafam o caos absoluto do movimento perpétuo do mar contra a
terra. Lenços negros esvoaçam com a brisa suave da manhã. Esvoaçam amarrados aos
pescoços da gente que chega e que me volta as costas, virando-se para diante da
linha do horizonte. Oculto pela vegetação das dunas, não se apercebem da
minha presença. O Sol que me bate na cara deforma a percepção visual das suas
silhuetas. Os lenços, levados pelo vento, prolongam os pescoços pelo horizonte
fora e projectam sombras no chão. Os corpos parecem ziguezaguear em curva. Os perfis
são disformes, uniões entre objetos, sombras e corpos.
Os lenços com que amarram os seus pescoços
transforma-os. Deixa-os indistinguíveis entre si. Os objetos, quando sem outra utilidade
que não seja a ornamentação das pessoas, convencem-nos que somos mais do que
animais. A utilização industrial do material sufoca-nos e, desmaiados pelo
prazer maquinal da improdutividade, leva-nos embora a capacidade de imaginar
uma sociedade assente nos valores máximos da Liberdade, Amor e Amizade.
O vento é o ar em movimento.
Destrói e transporta objetos. Provoca tempestades e altera o relevo. Traz-me ao
ouvido o ruído do riso dos homens na praia que conversam entre si. Ponho-me à
escuta, a tentar adivinhar o conteúdo das palavras que vibram na deslocação do
ar mas que são abafadas pelo rebentar nas ondas.
O Sol apaga a escrita das
ondas no areal. Altera e esbate as fronteiras feitas pelas marés. Os homens,
aquecendo-se ao Sol, libertam-se dos lenços com que amarram os pescoços
rindo. Guardam t-shirts, calções e fazem dos panos toalhas de praia. Riem
novamente. Com a mão, faço uma barreira de sombra que me protege os olhos e
deixa-me ver melhor as pessoas que ali se encontram. O primeiro é um rapaz
acabado de sair da puberdade. Deve ter por volta de 17 ou 18 anos de idade. É
alto e magro. Tem o cabelo curto e desgrenhado, olhos verdes e a pele morena e
ausente de pêlos. Estes aparecem abundantes nas pernas. A ausência total de
gordura permite que nele se desenhe toda a sua musculatura. Tem veias que
sobressaem aqui e ali. O segundo é o oposto do primeiro. É velho, baixo, gordo
e careca. As únicas veias que sobressaem são as varizes. Têm cor azul e
vermelha. Tem barba de há dois dias e bigode com vários anos. Os pêlos que não
tem na cabeça aparecem abundantes no resto do corpo. Beija alegremente o rapaz
e mantém-se encostado a este. O terceiro dos homens está na casa dos trintas. É
um homenzarrão alto e robusto. Cabelo estilo militar e olhos escuros. Peito e
ombros largos. Pêlos hirsutos distribuídos harmoniosamente pelo corpo. Barriga
rija, que com a contração do respirar profundo que tem, permite ver os
abdominais magníficos que nela se recortam. Braços fortes. Pernas e coxas
firmes. Mãos enormes que apalpam as mamas gigantescas do último homem. Este é
um transsexual de cabelo comprido e pila tolhida pela quantidade de estrogéneo
que lhe corre nas veias.
O primeiro casal não pára de
se beijar. Passaram da fase do chocho e salivam com a língua enfiada um no
outro. O homem mais velho passa do lado do rapaz para cima deste. O mais novo
desce com as mãos pelas costas pálidas do velho e apalpa-lhe o rabo com força.
O terceiro homem retira uma das mãos da mama do transsexual e passa-lhe com os
dedos pela região anal. Beija e lambe-lhe os mamilos. Tem uma perna encolhida por
cima deste e rabisca com o pé da outra perna na areia. Tendo por centro o
tornozelo rodopia os ossos, que impelidos pela força dos músculos, respondem a
impulsos aleatórios do cérebro. Os artelhos remexem a areia. Todos suspiram de
prazer.
O peso dos corpos movimenta os
sedimentos terrestres. A pressão exercida afunda, aquece e compacta os detritos
que se aproximam do centro do Planeta. Criará o magma que jorrará vulcões
abaixo. Elevará novas rochas pelo ar. Destruirá e renovará a superfície. O
homem mais velho sai de cima do rapaz e deixa ver a tusa com que este ficou. O homem
dos braços fortes tira a mão do cú do outro e mexe na sua própria pila. Vêem-se
mais cabeças ocultas pelas dunas. As pichas dos homens são enormes. A picha do
transsexual é atarracada mas entesoada. Os outros dois apertam-se um contra o
outro. Deixam-me a arder, prestes a rebentar. O homem das mamas grandes
levanta-se e corre em direção ao mar. O companheiro vira-se de costas e rabo
para cima. Os outros continuam a dança de um contra o outro. Os homens nas
dunas vêm-se. O meu sexo estoura numa explosão de langonha viscosa e
translúcida. Sente-se um cheiro agridoce pelo ar. Uso o leite para me proteger
do Sol.
II.
A populaça desemboca à entrada
da praia. Os homens, de peito farfalhudo e camisas desapertadas, olham uns para
os outros como que à espera da ordem de alguém. Vêm carregados de grelhas e
carvão. As mulheres que os seguem trazem o resto do carregamento: sardinhas,
pimentos, pão, vinho, fruta, cerveja e crianças entusiasmadas pela tarde que as
espera. Ao comando das esposas, os homens começam a montar os grelhadores e a
queimar carvão para fazer brasas.
A vastidão da areia não impede
que os grelhadores se concentrem todos na mesma área, o que impossibilita toda
e qualquer entrada ou saída da praia. Vê-se o carvão quente por baixo das
grelhas. Tudo o que há para lá daquele lugar é uma miragem que ondula com o
calor que dali irradia. O trato carinhoso da brasa alimenta o coração, prepara o
estômago para o pasto que há de vir.
Enquanto esperam, ligam os
rádios para animar a malta. A brisa da Primavera aquece com o avançar da tarde.
As mulheres curvam-se perante os alguidares de sangria que preparam, os homens
dão os primeiros goles de cerveja e as crianças ensaiam pénaltis em balizas
improvisadas. O mar amansa com a maré cheia. O folclore difunde-se pela
paisagem.
A grelha, bem quente sobre as
brasas, recebe as primeiras sardinhas. Ouve-se a efervescência da gordura
quando esta cai no carvão. O fumo toma conta da praia. Sente-se o cheiro da
sardinhada. As mãos papudas dos homens reviram com habilidade as sardinhas para
que estas não permaneçam na grelha mais do que cinco minutos por face. Só assim
se fará o milagre da pele crocante que se arranca com os dedos que não seguram
as fatias de pão engorduradas. Eles que assam o alimento, provam as primeiras iguarias,
acertam o sal e passam da cerveja para o vinho que não pode faltar a nenhuma
refeição. Elas, contentes, aguardam. As crianças saltam com tanta excitação.
A sardinha está perfeitamente
assada. Tem uma cor tostadinha e a pele ligeiramente estaladiça. As mulheres
agora também comem. As crianças, esfaimadas de tanta brincadeira, enfardam pão
e febras que as mães lhes dão à boca. Algumas engasgam-se com alguma espinha
que passa sem ser notada. Os homens arrotam com sabor a pimento. Há comida e
bebida com fartura. As camisas que mal entravam nos corpos imensos rebentam
pelas costuras. O mulherio abana-se devido ao calor que se faz sentir. A areia
cola-se à gordura das mãos das crianças que insistem em pontapear a bola,
escorregando dos abraços maternos que as querem muito mesmo muito. Os homens,
bêbedos e bochechudos, procuram a face das suas esposas em busca de um carinho
embriagado. Elas que os rejeitam, correm em direção à água. Eles dão alguns
passos atrás delas mas param estourados. Estoura a bulha entre a criançada.
Houve falta injustificada. Um diz que foi o outro a um pai mal encarado que
estatela uma bofetada ao pai da criança vitimizada. Há porrada entre os
adultos. As crianças juntam-se à confusão. As mulheres concorrem ao grito mais
alto.
Ao alvoroço instalado junta-se
o pessoal que descansava pela praia. Junta-se também o pessoal que olhava como
quem não quer ver a coisa mas morria de curiosidade. Todos querem ver mais de
perto o que se passa. Alguns querem ir embora e não podem, tal a confusão de
grelhadores, copos e talheres de plástico, jerricans e geladeiras amontoados
mesmo no caminho para o parque de estacionamento. Em busca de um caminho
alternativo para o seu carro há quem se aventure pelas dunas. Os homens que por
lá fornicam fogem que nem gazelas escorraçadas pela fúria popular. A luta pára.
A curiosidade pelo insólito sobrepõe-se à desavença futebolística.
Esgueiro-me por entre a flora e
fauna, arrastando ervas e lagartixas atrás de mim. Permaneço invisível no meio
da confusão.
III.
O Sol une praia e Oceano,
prolonga-os ajudado pela maré baixa. Cria uma ilusão de infinita planura
terrestre, trás de volta a calmaria do som do mar. A este contrapõe-se o
barulho das gaivotas que guerreiam pelo lixo deixado para trás pela pandilha da
sardinhada. Há latas e restos de porcaria pelo chão. Há pessoal que faz
exercício à beira mar e um casal que namora enquanto passeia o seu cão, um
rafeiro castanho de médio porte. Enquanto o cão roça e mija por todo o lado, os
namorados trocam saliva na areia. A mão do rapaz sobe pela camisola dela acima
parando numa mama. Deita-se em cima dela enquanto dão uns linguados. O namorico
é interrompido pelo latido do rafeiro que engraçou com a cadelita de um rapaz
que por ali passa com o animal atrelado. Há uma pequena escaramuça entre os
cães, acabando por não ser nada de mais. Cada um vai feliz à sua vida, o casal
para um lado, rapaz e cadela para o outro.
Regressam os homens da
manhã. Avançam por entre o estardalhaço abandonado pelas famílias da sardinhada.
Passam por entre pessoas que fazem a sua corrida de fim de tarde exercitando os
músculos necessários a uma vida saudável e regular. Quem corre avança até se
perder de vista, uns a seguir aos outros, a seguir os outros até desaparecer.
Os homens param numa clareira entre a sujidade. Estendem aí as suas toalhas.
Despem-se, retiram das suas mochilas os lenços negros que ondulavam com o vento
e amarram com estes o Homem-Mulher de cabelo liso e
comprido. Atam-lhe as mãos aos tornozelos, os tornozelos com tornozelos. O
companheiro da barriga musculada vira-o de barriga para baixo, agarra-lhe pelo
cabelo como as crinas de um cavalo e espeta-lhe com a picha pelo rabo adentro. Ao
abrir a boca para respirar, enfiam-lhe um arnês na boca e o gordo engasga-o com
o caralhão na boca. O terceiro bate-lhe com uma cana na cabeça. Ouve-se um gemer
abafado. As gaivotas rodopiam, gritam, vocalizando pelo ar. Os homens
revezam-se entre si. Sufocam-no com os lenços. O homem cavalgado vomita e
desmaia, cai para o lado. O mais novo vem-se em cima deste enquanto os outros
dois mijam-lhe para cima. O transsexual volta a si e ri-se. É desamarrado e
bate punhetas aos gajos que ainda não se vieram. Estes limpam-nos com os panos.
Todos riem felizes.
O
bater das ondas cria uma muralha de espuma que treme na areia. O vento
desmorona-lhes pedaços que, aqui e ali, voam desirmanados.
Escurece.
Poucos carros restam no parqueamento. Vêem-se vultos de pessoas que espreitam
por entre as árvores que rodeiam o parque. Dirijo-me a estas, curioso. Passo
por troncos e ramos desalinhados. Assusto-me com o ruído dos pardais. Protejo a
face com os braços em riste. Descubro trilhos por entre os arvoredos. Paro perante
uma mão que me ampara a braguilha. Deixo que esta se abra, que uma boca me
alivie do sémen acumulado durante o dia.
Apresso-me
em direção ao carro. Sacudo a areia colada aos pés. Fecho a porta do carro,
ligo o rádio, isolo-me de tudo o que se passa lá fora. Meto a chave na ignição.
Uma centelha elétrica gera um explosão que mete o motor em funcionamento. O
carro desloca-se deixando um rasto de poeira pelo ar. A cidade aguarda o meu
regresso.
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