quarta-feira, 3 de abril de 2013

 
A praia

I.

As ondas distorcem o areal. Criam fronteiras entre areia seca e molhada. Criam linhas divisórias entre si, desenham no chão o vaivém natural das marés, grafam o caos absoluto do movimento perpétuo do mar contra a terra. Lenços negros esvoaçam com a brisa suave da manhã. Esvoaçam amarrados aos pescoços da gente que chega e que me volta as costas, virando-se para diante  da  linha do horizonte.  Oculto pela vegetação das dunas, não se apercebem da minha presença. O Sol que me bate na cara deforma a percepção visual das suas silhuetas. Os lenços, levados pelo vento, prolongam os pescoços pelo horizonte fora e projectam sombras no chão. Os corpos parecem ziguezaguear em curva. Os perfis são disformes, uniões entre objetos, sombras e corpos.
 Os lenços com que amarram os seus pescoços transforma-os. Deixa-os indistinguíveis entre si. Os objetos, quando sem outra utilidade que não seja a ornamentação das pessoas, convencem-nos que somos mais do que animais. A utilização industrial do material sufoca-nos e, desmaiados pelo prazer maquinal da improdutividade, leva-nos embora a capacidade de imaginar uma sociedade assente nos valores máximos da Liberdade, Amor e Amizade.
O vento é o ar em movimento. Destrói e transporta objetos. Provoca tempestades e altera o relevo. Traz-me ao ouvido o ruído do riso dos homens na praia que conversam entre si. Ponho-me à escuta, a tentar adivinhar o conteúdo das palavras que vibram na deslocação do ar mas que são abafadas pelo rebentar nas ondas.
O Sol apaga a escrita das ondas no areal. Altera e esbate as fronteiras feitas pelas marés. Os homens, aquecendo-se ao Sol, libertam-se dos lenços com que amarram os pescoços rindo. Guardam t-shirts, calções e fazem dos panos toalhas de praia. Riem novamente. Com a mão, faço uma barreira de sombra que me protege os olhos e deixa-me ver melhor as pessoas que ali se encontram. O primeiro é um rapaz acabado de sair da puberdade. Deve ter por volta de 17 ou 18 anos de idade. É alto e magro. Tem o cabelo curto e desgrenhado, olhos verdes e a pele morena e ausente de pêlos. Estes aparecem abundantes nas pernas. A ausência total de gordura permite que nele se desenhe toda a sua musculatura. Tem veias que sobressaem aqui e ali. O segundo é o oposto do primeiro. É velho, baixo, gordo e careca. As únicas veias que sobressaem são as varizes. Têm cor azul e vermelha. Tem barba de há dois dias e bigode com vários anos. Os pêlos que não tem na cabeça aparecem abundantes no resto do corpo. Beija alegremente o rapaz e mantém-se encostado a este. O terceiro dos homens está na casa dos trintas. É um homenzarrão alto e robusto. Cabelo estilo militar e olhos escuros. Peito e ombros largos. Pêlos hirsutos distribuídos harmoniosamente pelo corpo. Barriga rija, que com a contração do respirar profundo que tem, permite ver os abdominais magníficos que nela se recortam. Braços fortes. Pernas e coxas firmes. Mãos enormes que apalpam as mamas gigantescas do último homem. Este é um transsexual de cabelo comprido e pila tolhida pela quantidade de estrogéneo que lhe corre nas veias.
O primeiro casal não pára de se beijar. Passaram da fase do chocho e salivam com a língua enfiada um no outro. O homem mais velho passa do lado do rapaz para cima deste. O mais novo desce com as mãos pelas costas pálidas do velho e apalpa-lhe o rabo com força. O terceiro homem retira uma das mãos da mama do transsexual e passa-lhe com os dedos pela região anal. Beija e lambe-lhe os mamilos. Tem uma perna encolhida por cima deste e rabisca com o pé da outra perna na areia. Tendo por centro o tornozelo rodopia os ossos, que impelidos pela força dos músculos, respondem a impulsos aleatórios do cérebro. Os artelhos remexem a areia. Todos suspiram de prazer.
O peso dos corpos movimenta os sedimentos terrestres. A pressão exercida afunda, aquece e compacta os detritos que se aproximam do centro do Planeta. Criará o magma que jorrará vulcões abaixo. Elevará novas rochas pelo ar. Destruirá e renovará a superfície. O homem mais velho sai de cima do rapaz e deixa ver a tusa com que este ficou. O homem dos braços fortes tira a mão do cú do outro e mexe na sua própria pila. Vêem-se mais cabeças ocultas pelas dunas. As pichas dos homens são enormes. A picha do transsexual é atarracada mas entesoada. Os outros dois apertam-se um contra o outro. Deixam-me a arder, prestes a rebentar. O homem das mamas grandes levanta-se e corre em direção ao mar. O companheiro vira-se de costas e rabo para cima. Os outros continuam a dança de um contra o outro. Os homens nas dunas vêm-se. O meu sexo estoura numa explosão de langonha viscosa e translúcida. Sente-se um cheiro agridoce pelo ar. Uso o leite para me proteger do Sol.

II.

A populaça desemboca à entrada da praia. Os homens, de peito farfalhudo e camisas desapertadas, olham uns para os outros como que à espera da ordem de alguém. Vêm carregados de grelhas e carvão. As mulheres que os seguem trazem o resto do carregamento: sardinhas, pimentos, pão, vinho, fruta, cerveja e crianças entusiasmadas pela tarde que as espera. Ao comando das esposas, os homens começam a montar os grelhadores e a queimar carvão para fazer brasas.
A vastidão da areia não impede que os grelhadores se concentrem todos na mesma área, o que impossibilita toda e qualquer entrada ou saída da praia. Vê-se o carvão quente por baixo das grelhas. Tudo o que há para lá daquele lugar é uma miragem que ondula com o calor que dali irradia. O trato carinhoso da brasa alimenta o coração, prepara o estômago para o pasto que há de vir.
Enquanto esperam, ligam os rádios para animar a malta. A brisa da Primavera aquece com o avançar da tarde. As mulheres curvam-se perante os alguidares de sangria que preparam, os homens dão os primeiros goles de cerveja e as crianças ensaiam pénaltis em balizas improvisadas. O mar amansa com a maré cheia. O folclore difunde-se pela paisagem.
A grelha, bem quente sobre as brasas, recebe as primeiras sardinhas. Ouve-se a efervescência da gordura quando esta cai no carvão. O fumo toma conta da praia. Sente-se o cheiro da sardinhada. As mãos papudas dos homens reviram com habilidade as sardinhas para que estas não permaneçam na grelha mais do que cinco minutos por face. Só assim se fará o milagre da pele crocante que se arranca com os dedos que não seguram as fatias de pão engorduradas. Eles que assam o alimento, provam as primeiras iguarias, acertam o sal e passam da cerveja para o vinho que não pode faltar a nenhuma refeição. Elas, contentes, aguardam. As crianças saltam com tanta excitação.    
A sardinha está perfeitamente assada. Tem uma cor tostadinha e a pele ligeiramente estaladiça. As mulheres agora também comem. As crianças, esfaimadas de tanta brincadeira, enfardam pão e febras que as mães lhes dão à boca. Algumas engasgam-se com alguma espinha que passa sem ser notada. Os homens arrotam com sabor a pimento. Há comida e bebida com fartura. As camisas que mal entravam nos corpos imensos rebentam pelas costuras. O mulherio abana-se devido ao calor que se faz sentir. A areia cola-se à gordura das mãos das crianças que insistem em pontapear a bola, escorregando dos abraços maternos que as querem muito mesmo muito. Os homens, bêbedos e bochechudos, procuram a face das suas esposas em busca de um carinho embriagado. Elas que os rejeitam, correm em direção à água. Eles dão alguns passos atrás delas mas param estourados. Estoura a bulha entre a criançada. Houve falta injustificada. Um diz que foi o outro a um pai mal encarado que estatela uma bofetada ao pai da criança vitimizada. Há porrada entre os adultos. As crianças juntam-se à confusão. As mulheres concorrem ao grito mais alto.
Ao alvoroço instalado junta-se o pessoal que descansava pela praia. Junta-se também o pessoal que olhava como quem não quer ver a coisa mas morria de curiosidade. Todos querem ver mais de perto o que se passa. Alguns querem ir embora e não podem, tal a confusão de grelhadores, copos e talheres de plástico, jerricans e geladeiras amontoados mesmo no caminho para o parque de estacionamento. Em busca de um caminho alternativo para o seu carro há quem se aventure pelas dunas. Os homens que por lá fornicam fogem que nem gazelas escorraçadas pela fúria popular. A luta pára. A curiosidade pelo insólito sobrepõe-se à desavença futebolística.  
            Esgueiro-me por entre a flora e fauna, arrastando ervas e lagartixas atrás de mim. Permaneço invisível no meio da confusão.

III.

            O Sol une praia e Oceano, prolonga-os ajudado pela maré baixa. Cria uma ilusão de infinita planura terrestre, trás de volta a calmaria do som do mar. A este contrapõe-se o barulho das gaivotas que guerreiam pelo lixo deixado para trás pela pandilha da sardinhada. Há latas e restos de porcaria pelo chão. Há pessoal que faz exercício à beira mar e um casal que namora enquanto passeia o seu cão, um rafeiro castanho de médio porte. Enquanto o cão roça e mija por todo o lado, os namorados trocam saliva na areia. A mão do rapaz sobe pela camisola dela acima parando numa mama. Deita-se em cima dela enquanto dão uns linguados. O namorico é interrompido pelo latido do rafeiro que engraçou com a cadelita de um rapaz que por ali passa com o animal atrelado. Há uma pequena escaramuça entre os cães, acabando por não ser nada de mais. Cada um vai feliz à sua vida, o casal para um lado, rapaz e cadela para o outro.
            Regressam os homens da manhã. Avançam por entre o estardalhaço abandonado pelas famílias da sardinhada. Passam por entre pessoas que fazem a sua corrida de fim de tarde exercitando os músculos necessários a uma vida saudável e regular. Quem corre avança até se perder de vista, uns a seguir aos outros, a seguir os outros até desaparecer. Os homens param numa clareira entre a sujidade. Estendem aí as suas toalhas. Despem-se, retiram das suas mochilas os lenços negros que ondulavam com o vento e amarram com estes o Homem-Mulher de cabelo liso e comprido. Atam-lhe as mãos aos tornozelos, os tornozelos com tornozelos. O companheiro da barriga musculada vira-o de barriga para baixo, agarra-lhe pelo cabelo como as crinas de um cavalo e espeta-lhe com a picha pelo rabo adentro. Ao abrir a boca para respirar, enfiam-lhe um arnês na boca e o gordo engasga-o com o caralhão na boca. O terceiro bate-lhe com uma cana na cabeça. Ouve-se um gemer abafado. As gaivotas rodopiam, gritam, vocalizando pelo ar. Os homens revezam-se entre si. Sufocam-no com os lenços. O homem cavalgado vomita e desmaia, cai para o lado. O mais novo vem-se em cima deste enquanto os outros dois mijam-lhe para cima. O transsexual volta a si e ri-se. É desamarrado e bate punhetas aos gajos que ainda não se vieram. Estes limpam-nos com os panos. Todos riem felizes.
            O bater das ondas cria uma muralha de espuma que treme na areia. O vento desmorona-lhes pedaços que, aqui e ali, voam desirmanados.
            Escurece. Poucos carros restam no parqueamento. Vêem-se vultos de pessoas que espreitam por entre as árvores que rodeiam o parque. Dirijo-me a estas, curioso. Passo por troncos e ramos desalinhados. Assusto-me com o ruído dos pardais. Protejo a face com os braços em riste. Descubro trilhos por entre os arvoredos. Paro perante uma mão que me ampara a braguilha. Deixo que esta se abra, que uma boca me alivie do sémen acumulado durante o dia.
            Apresso-me em direção ao carro. Sacudo a areia colada aos pés. Fecho a porta do carro, ligo o rádio, isolo-me de tudo o que se passa lá fora. Meto a chave na ignição. Uma centelha elétrica gera um explosão que mete o motor em funcionamento. O carro desloca-se deixando um rasto de poeira pelo ar. A cidade aguarda o meu regresso.  

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