quarta-feira, 23 de abril de 2014

Fantasmas (2)

Era pior do que os cães, vagueava noite e dia pelas ruas de Lisboa com os pés cheios de bolhas das botas que não utilizava há quase uma década, como se a vida fosse só isso. A vizinha do primeiro andar perguntava-se se ele ainda moraria no quarto do 3º andar, já que não o via há semanas, apesar dele não morar ali, apesar de não haver quarto no 3º andar, apesar dele não morar em lado nenhum, apesar dele não ter casa, apesar dela não ter nada a ver com isso (o pai dela, que tem mamas de mulher e que por vezes veste uma t-shirt dos Pantera,  passeia todos os dias uma boneca de plástico vestida com trajes tradicionais lusitanos, com um toque local de boné mitra no lado do pendura do seu Volksvagen carocha que hoje está parado sem uma roda na rua ao lado da cozinha da filha).
Era pior do que os cães. A noite ou o dia era-lhe igual. Não conhecia donos nem amizades. A vida passava-lhe indiferente como o rio a seu lado. Sentia os dedos atravessar as meias e roçar nas botas que tinha comprado em adolescente. Sentou-se indiferente às dores nos pés, vendo os pescadores atirarem linhas aos peixes que mergulhavam nas águas sujas do Tejo. O sol queimava-lhe o pescoço. A pele transpirava debaixo da camisola. A musculatura das pernas retesava-se por tanto ter caminhado. Bandos de miúdos sentados a seu lado comiam hamburgers que tiravam de sacos do Macdonalds. Os miúdos bebiam Coca-cola em ritmos sincopados. Os miúdos deixavam batatas pelo chão. Os miúdos ouviam músicas no telemóvel. Resmungou qualquer coisa contra o lixo no chão e levantou-se acompanhado pelos insultos imberbes dos miúdos. Passou entre os carros parados no estacionamento e o som ofegante dos amantes interrompidos num banco traseiro deu-lhe fome. Atrás, uma sereia cantava para os miúdos que o haviam insultado. Atraídos por ela afogavam-se na água. A sereia engasgou-se num pedaço de plástico que por ali boiava e morreu sufocada.
Era pior do que os cães. Sentou-se num café e pediu uma bica que bebeu seguido de uma chamuça e imperial. A rotatividade das pessoas pelas mesas estacou-o por um instante. As ondas de energia provocadas pelo arrojar das cadeiras no mármore do chão vibrou-lhe os nervos de baixo acima até lhe atingir a nuca como um soco e ladrou. Cresceram-lhe pêlos e dentes caninos afiados, garras e orelhas pontiagudas. A rotatividade das pessoas pelas mesas acelerou e o empregado de mesa levou-lhe um bitoque que o rapaz ganiu não ser para si, mas o alongar da cara que se transformava em focinho não lhe permitiu dizer palavra, pelo que lhe trouxeram mais cerveja com medo que se engasgasse. A cerveja estava fresca, mas o que lhe soube mesmo bem foram os tremoços que trouxeram a acompanhar.
Era pior do que os cães. Na esplanada o sol aquecia as pessoas sentadas a conversar. A rotatividade das cadeiras era ali inexistente. O empregado saía do café com bandejas cheias que recolhia com loiça vazia. A registadora cumpria o seu dever maquinal de gravar toda a actividade comercial. Ouvia-se o tilintar cerâmico de chávenas e pires a baterem em copos de vidro. A azáfama dentro do café contrastava com a imobilidade total das pessoas sentadas na esplanada a aquecer. Quem de fora olhava podia vê-los sentados a derreter. Os queixos a gotejar de encontro ao colo, as ancas a escorregar pelas laterais das cadeiras, a altura dos corpos a diminuir em poças humanas que por sua vez evaporavam ar fora. Os empregados, cujas ordens que têm nestes locais é para continuar a trazer cerveja até os clientes pedirem a conta, assim o faziam, ficando as mesas a transbordar de copos cheios que começavam a cair, misturando cevada fresca com os corpos líquidos da clientela. Dentro do café, a temperatura convidava a vestir um agasalho. Gente havia que se servia dos pêlos que não deixavam de crescer no corpo dele que era pior do que os cães, para tricotar casacos que vestiam para se proteger do frio. Criou-se um emaranhado de pêlo tal que o empregado de mesa tinha que usar de toda a sua habilidade e perícia para transportar as bebidas para a esplanada.Deixou-se dormir embalado pela digestão.
Era pior do que os cães.Acordou com os pêlos entrançados em casacos de luxo vestidos pelos clientes.O design moderno da indumentária da clientela encarecia os produtos vendidos no café. Fugiam pessoas assustadas com o valor das contas a pagar deixando os casacos para trás. Cortou os pelos que o ligavam à restante clientela com as garras que lhe haviam crescido e sentou-se no lado de fora da porta. O empregado fechou o café, arrumou a esplanada exterior, mesas e cadeiras empilhadas, presa por correntes a luzir ao luar. O empregado fechou o café e pôs-lhe uma trela.
Era pior do que os cães. Comia os restos de comida que lhe atiravam aos pés. Rosnava às pessoas que passavam por si.

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