quinta-feira, 3 de abril de 2014

Fantasmas (1)

Havia uma velha fantasma vestida de noiva que vagueava de dia pelas ruas de Benfica. Semi-transparente de tanto pálida, arrastava o seu vestido de um branco imaculado pelo pó da calçada. Acho que a vi uma ou duas vezes. A primeira vez parece-me ter sido na Avenida Gomes Pereira e a segunda vez tenho a certeza que foi na Rua em Frente à Estação. Muito se falava dela na altura. Entretanto foi esquecida e, adormecidos que estão os escravos do sonho, desapareceu dando lugar aos excelentíssimos párias da vida. Começou-se a filtrar a realidade por um mundo em LCD Touchscreen digital, cuja fantasia 3D rouba toda o nosso foco e desvia-nos a atenção destes casos paranormais. A ficção tornou a vida inverosímil. A mulher fantasma desapareceu, não porque esteja morta, mas pela nossa incapacidade de processar informação. Escondido o Sol por detrás das nuvens, vencem-nos os mestres apátridas dos mercados. A T.V. é invadida por políticos e propaganda, na rádio ouvem-se vozes em loop e os jornais desapareceram, estando os tradicionais meios de comunicação transformados em folhetins portadores de sexo e escândalo. Os computadores, disfarçados de aparelhos de comunicação, tiram-nos a vista com seus ecrãs cada vez mais minúsculos. Esbatidas as cores do Universo, as nuvens carregam sob o céu. Encharcados até aos ossos, torcendo a chuva dos fatos e gravatas e sapatos, à espera de uma Primavera que nunca mais chega, procuramos cêntimos pelo chão. Guardamo-los religiosamente, substituindo a Vida pelo que nos dizem que a vida é, criando relíquias de metal negro com valor hipotético.
Por vezes quase que ainda sinto a velha fantasma vestida de noiva que vagueava de dia pelas ruas de Benfica. Por vezes quase que a sinto, por vezes a recordo. Quase que sinto mas não me arrepio. Quase que vejo mas não materializo.  

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