quinta-feira, 19 de junho de 2014

Fantasmas (3)


Amanhece. O sol derruba a escuridão e elimina sombras onde vivem espectros negros. Afogueados, escondem-se nas árvores onde pássaros dormem e acordam as aves que piam ao despertar. Pessoas caem das suas camas. Ouve-se  o bater das portas dos habitáculos por onde saem. Entram em casas de banho de aluguer, sentam-se em sanitas, cagam, limpam o cú a papel compacto do Minipreço. Levantam-se e despejam a água do autoclismo.  As pessoas abrem as torneiras da banheira. Lavam o corpo com esponjas às quais adicionam detergentes próprios para as características das peles de cada um, roçam esponjas e panos pelo corpo (roçam-nas pelo sexo com especial atenção), esfregam a cara e tentam abrir os olhos.
Ouve-se o mastigar do pequeno-almoço. Mastigam e migalhas caem. Ouvem-se portas das casas a abrir e a fechar. Há o movimento ensonado das pessoas escadas abaixo. Há comandos a pilhas com que abrem portas automáticas dos carros. Há pessoas que apanham autocarros, há pessoas em filas, há. Filas de trânsito intermináveis. Pessoas com o sol a bater na cara. Trabalhos que duram o dia inteiro. Pessoas sem trabalho. Trabalhos intermináveis.
Havia um homem que passeava com dois tigres verdes pela rua sem os ver. Os tigres moviam-se em seu redor. Os tigres afugentavam velhas com medo de tigres. Havia um rapaz perdido a caminho da escola que dava  livros aos sem-abrigo que desapareciam atrás das suas palavras. Um dos tigres, ao ver numa cesta de verga a ninhada de gatos que uma velha trazia no colo pensou ter procriado. Para seus filhos salvar, atacou a mulher que se protegeu à paulada e abriu-lhe o crânio matando-o de imediato. O segundo tigre comeu os gatos à velha. O rapaz, apavorado, espalhou os livros pelo chão com pessoas outrora desabrigadas agora nestes contidos e,  mãos fechadas nos bolsos seguram braços cujos ombros pendurados se encolhem alheados. Há transeuntes apáticos. Há a apropriação dos nomes pelas marcas. Há a mercantilização do desejo. Há o poder de compra e a compra do poder. O condicionamento do homem pelo homem. A máquina que devora o dedo e não a mão. O tilintar do dinheiro nos bolsos dos ricos. Sem-abrigo iluminados pela luz da manhã. O dia. A vida ilusória no meio da multidão arrasta cadáveres que se movem pelos próprios pés. A turba ordenada pela condição do capital adia a morte eternamente. A rotina intransigente das obrigações diárias atrasa a ordem perfeita do caos. Na apatia tolerante da barbárie esconde-se a repetição do passado. Do Caos nascerá a Morte. Da Morte o renascimento permanente da Vida. A reinterpretação constante da invisibilidade.
A porta da sala do homem cujos tigres passeam em seu redor por vezes abre-se e, pensa ele que se abre sozinha, que foi uma brisa que por ali passou. O rapaz perdido encontra o caminho e vê os pais. Estes amam-no eternamente.
O Sol diminui o seu calor. As folhas das árvores tremem quando este se aproxima da linha do horizonte. Pessoas e pássaros retornam aos seus lares. As sombras escondem a claridade. Espectros andam  por todo o lado.

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