segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Reticências por um mundo melhor

Nas paredes das casas onde habito crescem asas de anjos com penas. Dos tijolos que as formam, saem pernas peludas e musculadas de homens sem tronco. Bustos indefinidos procuram formas finais. Depilam as pernas que dos tijolos saem com lâminas presas às suas línguas. Pelos à solta preenchem o vazio. Viciam o ar. Carregam a atmosfera com o peso do preconceito. A organização imperfeita das sociedades é vício das formas como a mente adjectiva e compartimenta o saber nas suas gavetas empoeiradas. O vício é descontrolo do saber. O poder controla as respostas, mas respostas sem perguntas não são interrogações.

Construções colectivas da realidade formam as paredes das casas onde habito. Delas não tenho como fugir. Nelas surgem cinzeiros em salas onde não se pode fumar. Bustos indefinidos tornam cinzeiros em focos de confronto. Formas do desconforto. Problemas sem soluções. Quem fuma torna o cinzeiro num incentivo ao vício. Quem não fuma faz o mesmo. Um cinzeiro é objecto e concreto. Nele há um preconceito comum de depósito de cinza e lixo, mas à nossa volta há cinza e lixo acumulados por todo o lado. Respostas. Um cinzeiro não é um problema, cinzeiros são formas com soluções.

Braços que nascem do chão das salas em que habito agarram as pernas que são depiladas. Paralisam o movimento. Braços desocupados permitem o trabalhar das línguas armadas com lâminas que depilam pernas musculadas e peludas. Aos olhos das faces caídas pela indefinição dos bustos, a depilação é facilidade em ver pernas delineadas. Pernas que não andam perdem massa muscular. Pernas que não andam são massas indefinidas, são ossos e gordura parados.   

Nas paredes das casas em que trabalho, crescem asas com penas de anjos. A liberdade é a correcção automática da consciência. As lâminas estão nas mãos dos braços. Cortam pão e linguiça. Ajudam a tratar alimentos que alguém há-de comer. Aliviam o desconforto. Descontrolam o peso do poder. Nas paredes que trabalho, a aceitação crítica do desconforto é uma fasquia a atingir. O desconforto é um dos caminhos para a paz. Um dos caminhos sem fim. A observação atenta do desconforto permite a libertação do inevitável, alivia-nos do impossível, abre a porta das possibilidades infinitas do Universo. A aceitação crítica do desconforto torna-o um pouco mais confortável. Nas paredes que trabalho, a consciência da inevitabilidade é descontrolo do poder. É luta activa contra as gorduras da indefinição. A longo prazo, é a prática do movimento que define o músculo.

Há que conhecer as coisas para as libertar. Apegados à prática comum da utilização das coisas, esquecemos tudo o que desconhecemos. Quando estou nesta minha descontracção, tudo acontece quando deve acontecer. As paredes abrigam conceitos. Os conceitos são livres de preocupação. Tijolos formam paredes das casas em que habito e trabalho.  

2 comentários:

Almas Duras disse...

Também escreves bem quando estás feliz! Decidi comentar este porque sabes bem que não resisto à mais pequena pista de humidade.

Almas Duras disse...

Também escreves bem quando estás feliz! Decidi comentar este porque sabes bem que não resisto à mais pequena pista de humidade.